- A ANPD proibiu a oferta de compensação financeira pela coleta de dados biométricos do projeto World de Sam Altman no Brasil.
- Especialistas debatem o paradoxo entre autonomia individual para negociar dados pessoais e a necessidade de proteção regulatória.
- O caso reflete tensões globais sobre consentimento e privacidade de dados em um ecossistema digital cada vez mais baseado em IA.
A recente decisão da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) sobre o projeto World, de Sam Altman, reacendeu o debate sobre consentimento livre no uso de dados pessoais. O projeto oferecia criptoativos em troca da coleta de dados biométricos, prática que gerou preocupações regulatórias. A ANPD entendeu a oferta como potencial “vício de consentimento”, suspendendo a compensação financeira pela coleta de íris no Brasil.
O caso expõe um paradoxo fundamental na legislação brasileira relacionada à proteção de dados e autonomia individual. Enquanto no Código Civil o consentimento possui caráter contratual, na LGPD ele representa a autodeterminação informativa do cidadão. Carlos Affonso Souza, diretor do ITS-Rio, argumenta que oferecer incentivos financeiros não deveria, automaticamente, invalidar o consentimento dos usuários.
O verdadeiro desafio, segundo especialistas, está em definir até que ponto as pessoas são livres para negociar o uso de seus dados. O ambiente digital contemporâneo baseia-se cada vez mais em trocas desse tipo, exigindo novos paradigmas regulatórios. A decisão da ANPD sobre o World ID estabelece um precedente significativo para futuros projetos de tecnologia no país.
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O dilema do consentimento na coleta de dados biométricos
A Tools for Humanity (TFH), empresa fundada por Altman que opera o projeto World, defende que seu sistema preserva a privacidade e anonimato dos usuários. Segundo Rodrigo Tozzi, representante da empresa no Brasil, o processo de verificação biométrica é projetado para garantir privacidade. O dispositivo Orb captura imagens da íris que são processadas localmente e depois criptografadas, com dados fragmentados entre diferentes nós na internet.
Especialistas em direito digital questionam se o valor oferecido pela TFH poderia influenciar indevidamente o processo decisório dos usuários. A compensação financeira, equivalente a meio salário mínimo na época, atraiu pessoas interessadas principalmente na recompensa monetária. A ANPD entendeu que essa prática compromete a natureza livre do consentimento necessário para dados sensíveis como biometria.
A coleta de íris começou em novembro de 2024 em centros comerciais de São Paulo, antes da intervenção regulatória. O objetivo declarado do projeto World ID é criar um “passaporte digital” baseado em biometria ocular como “prova de humanidade”. A decisão brasileira segue medidas semelhantes adotadas por França, Alemanha, Espanha, Argentina e Hong Kong.

Implicações para o ChatGPT e ecossistema OpenAI
As políticas de privacidade da OpenAI também enfrentam escrutínio crescente por sua ampla coleta de dados para treinamento de inteligência artificial. A empresa coleta diversos tipos de informações pessoais, incluindo dados de conta, conteúdo gerado pelos usuários e interações nas redes sociais. A OpenAI permite que usuários optem por não ter seus dados utilizados para treinamento através do portal de privacidade ou controles específicos no ChatGPT.
Especialistas como Lucas Maldonado da FGV e Mariana Peccicacco da LP Consultoria apontam limitações nas políticas da empresa. Segundo Peccicacco, embora o ChatGPT colete relativamente poucos dados pessoais, seus termos de uso e política de privacidade carecem de clareza suficiente. A empresa, com sede na Califórnia, utiliza termos genéricos que não se adaptam completamente à legislação brasileira de proteção de dados.
Este cenário representa um desafio maior para o CEO da OpenAI, que recentemente elogiou concorrentes como a DeepSeek. Enquanto Altman defende inovação tecnológica acelerada, enfrenta resistência regulatória crescente em múltiplas frentes. O fundador do ChatGPT já ameaçou anteriormente retirar serviços da Europa devido a regulamentações consideradas excessivas.
O contraste entre modelos regulatórios globais de IA
O debate sobre proteção de dados e consentimento ocorre em um contexto global de diferentes abordagens regulatórias. A União Europeia adotou em 2024 a legislação mais abrangente do mundo sobre IA, com foco no “respeito da vida dos cidadãos”. Nos Estados Unidos, sob a administração Trump, observa-se uma tendência à desregulamentação, com a reversão de mecanismos estabelecidos pelo governo anterior.
Durante a Cúpula para Ação sobre Inteligência Artificial em Paris, executivos de big techs defenderam posições distintas sobre regulação. Adam Cohen, diretor da OpenAI, argumentou que regras mais flexíveis favorecem novos participantes no mercado, enquanto representantes europeus como Solange Viegas dos Reis defenderam que a regulação adequada pode promover concorrência justa.
O Brasil, com sua decisão recente sobre o projeto World, posiciona-se entre esses diferentes modelos regulatórios. A ANPD demonstra comprometimento com a proteção da autodeterminação informativa dos cidadãos brasileiros. Este posicionamento estabelece precedentes importantes para futuras interações entre empresas de tecnologia global e o marco regulatório nacional.